Se a nossa pequenez merece que a amemos no sentido de que nos obriga a prestar homenagem à verdade e nos permite imitar as humilhações de Jesus Cristo, o Verbo encarnado, poderá ser-nos ainda mais útil se a considerarmos nas suas relações com a infinita misericórdia de Deus.
As nossas faltas não devem nunca desanimar-nos, e que a dor de as termos cometido deve ser sempre acompanhada de uma invencível confiança na bondade divina. As considerações que vamos fazer agora mostrarão que os nossos pecados e imperfeições, longe de diminuírem essa confiança, são um dos seus elementos mais fecundos.
A este respeito, os textos do nosso Santo são tão claros e abundantes que dispensam todos os comentários. Limitar-nos-emos por isso a citá-los fielmente. Antes, porém, não será inútil buscarmos em outras fontes algumas reflexões que sintetizem e ofereçam uma base teológica a esta consoladora doutrina.
Deixemos em primeiro lugar que um eminente autor contemporâneo, já citado, nos exponha e desenvolva numa página magnífica, inspirada na doutrina de São Tomás, o princípio fundamental deste novo aspecto da arte de aproveitarmos as nossas faltas.
“Deus é amor, diz mons. Gay, citando as palavras de são João (1Jo 4,8). Deus ama, Deus ama-nos desde que existimos é para Ele uma e a mesma coisa, uma e a mesma necessidade. Não será, pois, esperança um dever para todos nós? Podemos ter receio de exceder-nos na esperança? Que desculpa podemos ter para que ainda haja dentro de nós uma centelha sequer de desconfiança?
“Dir-se-á: o pecado existe. Infelizmente, essa é a verdade! O pecado segue-nos, e, onde quer que se manifeste, cria um problema, traz uma complicação, levanta um obstáculo: problema para nós, complicação em nós, obstáculo diante de nós. Mas por acaso há problemas para Deus? Podemos embaraçar os seus caminhos ou opor-lhe barreiras? Ele se detém se assim lhe apraz, mas unicamente porque lhe apraz, e passa por toda a parte por onde quer passar.”
“O pecado atinge Deus porque o ofende, mas também não o atinge porque nunca o muda. É verdade que modifica os seus atos, mas não modifica a sua essência, isto é, deixa intocada a sua disposição primordial e substancial para conosco: o amor que nos tem. Numa palavra: em face do nosso nada, a sua bondade transforma-se em amor; em face do pecado, o seu amor converte-se em misericórdia.
“Mas para isso é necessária uma condição: que o pecador confie. E haverá alguém com mais títulos para confiar em Deus do que o pecador?
“É verdade que a santidade divina tem tal horror pelo pecado que a sua Justiça se vê obrigada a puni-lo com penas espantosas; mas é precisamente por isso que a misericórdia divina se comove incomparavelmente mais com essa desgraça do que com qualquer outra que pudesse atingir-nos.
“Encarado sob o aspecto da pena que merece, o pecado é, portanto, o mal supremo e a miséria absoluta: a perda de Deus! Mas para onde há de acorrer a maior compaixão, se não é para a maior miséria? Tal é a razão pela qual a misericórdia de Deus se concentra neste ponto, a fim de que o pecador se arrependa, ganhe confiança, obtenha o perdão e se salve. Disto se conclui que a própria veemência da cólera divina é em Deus uma nova e mais viva fonte de bondade e de compaixão, tornando-se como que um novo fundamento para a nossa esperança”.
A miséria atrai a Misericórdia
Comprovado de um modo tão claro que a Misericórdia divina não é senão a sua Bondade, isto é, a própria essência de Deus nas relações com a miséria da sua criatura, entrevê-se que cada uma das nossas quedas pode chegar a ser, se assim o quisermos, uma nova ocasião para que se manifeste esse atributo divino.
“Bem-aventurados os misericordiosos! (Mt 5,7). Pode-se dizer que, ao pronunciar esta bem-aventurança, o Filho de Deus feito Homem nos revelou a sua própria bem-aventurança e a de seu Pai que está nos céus. Porque, se a misericórdia, tal como a pode praticar um simples mortal, é para ele um princípio e uma fonte de felicidade, que se poderá dizer da misericórdia tal como Deus e só Deus sabe exercê-Ia, e que fonte de felicidade não constituirá incessantemente no seio da Divindade?
“Bem-aventurados os misericordiosos: portanto, bem-aventurado sobretudo Aquele que é o único que tem o direito de se chamar bom: Só um é bom, Deus (Mt 19,17), Aquele cuja essência é a caridade, Aquele cuja misericórdia e bondade não têm outros limites que os da própria eternidade: Confessei o Senhor porque é bom, porque a sua misericórdia permanece para sempre (SI 135).
“O rigor não é próprio da natureza de Deus. Quando Deus cede à cólera, assume uma atitude que não lhe é peculiar: Ao irar-se, faz uma obra que lhe é estranha (Is 28, 21). A sua mão esquerda tem a vara da justiça, mas logo se cansa de trabalhar com essa mão; a mão direita do Senhor, pelo contrário, é o instrumento favorito do seu coração, é ela que empreende as obras do seu amor… De um pecador empedernido, sabe fazer num instante um penitente decidido: Tal mudança é obra da mão direita do Altíssimo (SI 76,11)”.
Mais ainda: a misericórdia só se pode exercer sobre a miséria, e que miséria mais espantosa que o pecado?, que objeto mais digno de piedade para uma infinita piedade? Depende de nós que essas faltas, cujo peso nos esmaga e nos torna vítimas da ira divina, sejam para Deus uma ocasião sem par de manifestar um atributo que se nos afigura ser-lhe mais grato que o da justiça: a bondade, o amor. Nada mais temos a fazer do que dirigir-nos ao seu coração e dizer-lhe com Davi: Vós me perdoareis, Senhor, e apagareis os meus pecados para glorificar a mais preferida das vossas perfeições, a misericórdia: “por causa da vossa bondade, Senhor”; e a própria multidão dos meus pecados me faz esperar mais o vosso perdão, porque, quanto mais numerosos forem, mais glorificareis a vossa misericórdia: “Perdoai o meu pecado, por maior que seja” (SI 24, 11).
“Não foi Deus” – diz um autor pouco conhecido – que nos ensinou a não nos deixarmos nunca vencer pelo mal, mas a vencer o mal pelo bem (cf.Rom 12, 21), a nunca devolver o mal com o mal, nem a maldição com a maldição (cf.1Pe 3, 9), a encher de benefícios os nossos inimigos e a acumular assim carvões em brasa sobre as suas cabeças (cf. Rom 12, 20)? Ora, não é o discípulo mais que o mestre, nem o servo mais que o seu senhor (Mt 10,24). Se, pois, vemos os discípulos desse divino Mestre praticar tão perfeitamente essa lição, que não só se mostram cheios de benevolência e mansidão para com os que os perseguem, mas ainda lhes retribuem o mal com o bem, até ao extremo de dar a vida para os salvar, que diremos do Mestre de quem essas almas justas receberam uma doutrina tão sublime? A caridade de todos os discípulos juntos, comparada com a de Jesus Cristo, não atinge as proporções de uma gota de água comparada com o oceano. Por conseguinte, se uma centelha de caridade foi tão poderosa neles, que não fará o imenso e infinito incêndio da suprema caridade de Deus?”
São João Crisóstomo exclama: “Jesus disse-nos: Se amais os que vos amam, que recompensa podeis esperar? Não fazem o mesmo os pagãos? (Mt 5, 47). E nós dize- mos de Deus: se Ele só escutasse e socorresse os justos, que são seus amigos, não faltaria alguma coisa à sua bondade?”
TISSOT, Joseph. A arte de aproveitar as próprias faltas. Ed.Quadrante.P. 75-79.
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