sábado, 22 de agosto de 2015

Se eu pudesse viver minha vida de novo.

Através da cura das antigas feridas da nossa infância, principalmente aquelas que foram causadas por nossa família e por nossos pais, podemos ser curados das reações exageradas no casamento ou em outras situações do momento presente. Um dos fundadores da terapia familiar, Murray Bowen, constatou que, quando seus médicos residentes trabalhavam as mágoas antigas, originadas em seus pais, acabavam mostrando-se mais bem preparados como terapeutas e progrediam mais na melhora de seu próprio casamento do que os outros residentes que passavam pela terapia convencional com suas esposas.
Os exemplos de nossa família e de nossos pais afetam os modo pelo qual nos relacionamos não só com nosso cônjuge, mas com todas as demais pessoas, especialmente com Deus como Pessoa. Lembro-me da época em que ensinava na reserva dos índios Sioux. Quando ia falar daquela faceta de Deus que é Pai, muitas crianças não queriam nem ouvir falar do Deus Pai. Tinham medo de que o tal Deus Pai pudesse ser como seus pais alcoólicos cujo humor era imprevisível e que, por isso, costumavam fazer exigências descabidas ou então ignorar toda a família. Por outro lado, nos tempos de Jesus, quando ele e seu povo judeu carinhosamente chamavam a seu pai de Abba (que significa papai, paizinho), eles podiam relacionar-se com Deus como Pai. Talvez a razão pela qual as pessoas, em certas regiões, como o México, parecem ter um relacionamento mais afetivo com Maria, a mãe de Jesus, seja porque a mãe mexicana – e não o distante pai mexicano “machão” – é o centro da afeição do lar nesse país. Não só as mães mexicanas, mas qualquer outro relacionamento muito chegado podem afetar nossa vida de oração. Penso, por exemplo, que uma das razões por que acho fácil relacionar-me com Jesus como irmão é o fato de ter um relacionamento muito próximo com meu irmão Matt.
A cura das mágoas de família.
Embora nossa família influencie nossos relacionamentos com Deus e com os outros, nem por isso os determina inexoravelmente. Mágoa alguma deve necessariamente nos paralisar. Num recente estudo feito por 984 profissionais da área de saúde mental, a falta de amor e de educação emocional por parte dos pais foi citada como a principal causa de problemas emocionais posteriores. Mas esses mesmos terapeutas observaram que crianças mal orientadas não estão condenadas a ser adultos bloqueados.
Não temos que ficar enredados nos exemplos de nossos pais nem andar tropeçando em culpas por não termos criado nossos filhos com perfeição. As pessoas não sofrem passivamente suas mágoas, mas podem frequentemente escolher entre deixar-se ferir ou deixar-se ser agraciadas por elas. A título de exemplo, quando trabalhávamos em aconselhamento, constatamos que frequentemente as pessoas apresentavam sintomas de depressão. Se lhes perguntávamos quando é que isso havia começado, apontavam alguma perda e diziam algo como: “Tudo começou quando meus pais faleceram. Depois disso tenho sentido um grande vazio na minha vida”. Mais tarde, quando dávamos retiros, deparávamo-nos com pessoas que haviam sofrido as mesmas perdas, mas haviam transformado o sofrimento em oportunidade de crescimento. Por exemplo, encontramos pais adotivos que não só haviam adotado uma criança autista, mas que durante seu casamento, foram adotando outras quinze centenas de crianças! Quando lhes perguntei por que adotar tantas crianças, responderam-me: “Somos órfãos e queríamos que nenhuma outra criança sentisse a solidão que sentimos”. De um lado, tínhamos aqueles que vinham à clínica psiquiátrica verdadeiramente abalados pela morte de seus pais e, por outro lado, pessoas que vinham  aos nossos retiros e para as quais a morte havia sido um dom – um dom que as ajudara a estender suas mãos e a acolher outros mil e quinhentos órfãos.
Nossa amiga Mary Tanner, da Inglaterra, nos dá o exemplo de como um lar adotivo pode ser edificante  para uma criança. Ao longo de anos, os tribunais ingleses foram mandando para Mary uma centena de crianças problemáticas. Ela recebeu esses filhos adotivos porque a outra única opção para eles era a cadeia. Cada uma dessas crianças tinha um distúrbio grave. Por exemplo, um garoto vinha tentando diariamente suicidar-se e várias vezes fora colocado em camisa de força. Graças à oração de cura interior para as feridas de sua vida desde o nascimento, ficou completamente curado. Dos cem garotos tocados pelo amor e pela oração de Mary Tanner, apenas quatro retornaram aos tribunais.
Como são curadas as mágoas.
Não só nossos modelos de comportamento revelam as mágoas passadas, mas até estudos fisiológicos do cérebro demonstram que tudo o que nos aconteceu  passa a ser parte integrante do nosso ser. Em 1951, o Dr. Wilder Penfield, neurocirurgião da Universidade McGill, constatou que, quando excitava determinada área do cérebro durante a cirurgia, o paciente recordava nitidamente um determinado incidente do passado como se estivesse acontecendo de novo com todos os sentimentos experimentados por ocasião do incidente original. Eis o que descreve o Dr. Penfield: “o paciente sente de novo a emoção que a situação originalmente produzira e ele se mostra consciente das mesmas interpretações, verdadeiras ou falsas, que havia dado à experiência quando da primeira vez. Assim, a reminiscência evocada não é a reprodução fotográfica das cenas ou dos eventos passados: é a reprodução do que o paciente viu e ouviu, sentiu e entendeu”. Carregamos não apenas as lembranças passadas, mas o sofrimento ou amor associado a essas lembranças.
Afortunadamente, nosso passado está presente, não apenas para nós, mas também para Jesus. Podemos libertar-nos dos efeitos negativos das mágoas passadas e transformá-las em dons de amor, trazendo Jesus para dentro das lembranças dolorosas. Quando convidamos Jesus a entrar em uma lembrança que nos causa alguma mágoa, não lhe estamos pedindo que apague o passado ou nos ajude a esquecê-lo. Antes, estamos pedindo a Jesus que cure nossa lembrança do mesmo jeito que ele fez com os discípulos de Emaús (cf. Lc. 24, 13-35). Quando no caminho de Emaús Jesus se juntou aos abatidos discípulos, o coração deles estava cheio de pesar e desapontamento porque guardavam lembranças dolorosas da morte de Jesus. Enquanto comentavam entre si os acontecimentos dos três dias anteriores, Jesus deu-lhes atenção e respondeu amorosamente a cada um dos aspectos em que se sentiam feridos. No final, os discípulos ficaram tão cheios de amor que puderam perdoar a Jesus, a si mesmos e a todos aqueles que os haviam magoado. Trocaram aquele coração deprimido pelo coração de Jesus, cheio de alegria e de amor. Quando se separaram de Jesus, tinham o próprio coração abrasado. Na cura de uma lembrança, partilhamos com Jesus nosso coração e ficamos com seu coração amoroso até conseguirmos ver o passado de uma forma completamente nova, com a visão de Jesus. Quando finalmente os discípulos chegaram a Emaús, a maior tragédia de suas vidas já se havia transformado no maior dom de amor e passaram a anunciar com alegria aos que ainda se mostravam pesarosos: “O Senhor ressuscitou!”
Como é que a oração pode curar uma mágoa profunda.
Verificamos o poder do amor de Jesus transformando o passado quando oramos com Linda pela cura das experiências de abuso sexual de sua infância. Ainda criança, Linda fora repetidamente submetida a abusos sexuais por parentes. Ao entrar na adolescência, passou a abusar de crianças pequenas. Quando já adulta, nos procurou em busca de oração, Linda ainda evitava criancinhas porque tinha medo de ser tentada a abusar delas. Sentia raiva de seus parentes, sentia culpa de seu próprio comportamento sexual e uma sensação constante de treva e vazio interior. Embora uma psicoterapia seja, em geral, muito proveitosa, os sintomas de Linda não se haviam alterado, apesar de catorze anos de psicoterapia. Durante todo esse tempo ela nunca fora sequer capaz de chorar.
Quando Dennis e eu (Sheila) começamos a orar com Linda, pedimos-lhe que se lembrasse de alguma ocasião em que sofrera abuso sexual e então convidasse Jesus a entrar em sua memória. Pensávamos que a prioridade de Jesus seria ajudar Linda a perdoar aos seus parentes. Embora tivesse conseguido reevocar uma lembrança e introduzir Jesus nela, ela continuava resistente quanto à capacidade de perdoar. Por isso, tentei prestar atenção a como Jesus queria amar Linda na sua lembrança de abuso sexual. Antes de mais nada, o que eu senti no coração de Jesus não foi ansiedade para que Linda perdoasse; foi, isto sim, ultraje pelo que lhe acontecera. Sentia que Jesus estava irado em defesa de Linda, tão irado com a profanação de seu corpo quanto ficara irado com a profanação do templo de Deus (cf. Jo 2, 13-17). Contei a Linda o que sentira e então lhe pedimos que visse Jesus expulsando as pessoas que haviam abusado dela da mesma forma como ele expulsara os cambistas que profanavam o templo. Nesse ponto, Linda se pôs a chorar pela primeira vez em catorze anos de psicoterapia. Quando lhe perguntamos porque estava chorando, respondeu-nos: “Porque Jesus ficou tão irado em minha defesa... porque ele me ama muito. O que ele quer é partilhar tudo comigo. Se eu chorar, ele chora; se eu ficar feliz, ele fica feliz”.
Nessa oração, Jesus deu a Linda aquilo de que ela mais precisava: fez-lhe saber que era amada em meio à sua mágoa e raiva e que sua raiva era raiva de Jesus. Assim que Linda se deu conta de que era amada na sua mágoa e raiva, começou a perdoar aos seus parentes e a si mesma. No Natal seguinte recebemos um presente de Linda: uma fotografia dela segurando carinhosa e protetoramente seu  sobrinho de dois anos. A partir do momento em que Linda deixou que Jesus a amasse em meio à sua lembrança dolorosa, a ponto de perdoar aos seus parentes e a si mesma, ela deixou de sentir a tentação de repetir o mesmo padrão de comportamento que lhe causara mágoa. E, como Linda não se vê mais tentada a comportamentos de abuso sexual, ela não mais precisa evitar as criancinhas.
Hoje Linda trabalha como psicoterapeuta no aconselhamento de famílias desequilibradas, muitas das quais abaladas por situações de abuso sexual. Recentemente tratou de um paciente bem novinho que, percebeu ela, vinha sofrendo abusos sexuais, apesar de todas as negativas por parte da família da criança. Graças à insistência de Linda, agressor (um vizinho) foi detido, e Linda foi credenciada junto ao departamento de polícia para auxiliar na solução de um caso de violência sexual que envolvia mais de cem crianças. Linda se encontra à  altura de auxiliar vítimas de abuso sexual porque a maior mágoa de sua vida veio a tornar-se o seu maior dom de amor. E eu mesma fui capaz de amá-la e sentir quanto Jesus queria curá-la porque também eu havia sofrido abuso sexual quando criança. Embora tenha reagido ao abuso sexual afastando-me ao invés de partir para a ação, como ocorreu a Linda, eu sabia quanto Jesus queria curar Linda porque sabia quanto ele me havia curado graças à oração e ao amor dos amigos.
Os catorze anos de psicoterapia de Linda não deixaram de ser muito proveitosos para pôr a descoberto suas dolorosas lembranças de abuso sexual. Mas o que curou essas recordações foi encontrar a Jesus em meio a tudo isso e descobrir que “ele quer partilhar tudo comigo”. Quando Linda o levou para dentro de suas lembranças dolorosas, ficou livre para viver as respostas amorosas de Jesus no presente.
Continuando a orar com Linda, pude constatar como o trauma do abuso sexual lhe havia bloqueado o desenvolvimento emocional. Embora muita cura tenha ocorrido graças às orações iniciais de Dennis e minhas, isso foi apenas o começo de um processo de cura ainda em andamento, durante o qual Linda vem reconstruindo os muitos anos de seu desenvolvimento emocional falho. Por exemplo, no início, quando se apresentou a nós, só vestia jaquetas e shorts e usava cabelo curto, o que lhe dava um ar pouco feminino. Em meio a um grupo de pessoas, encolhia-se silenciosamente num canto, parecendo criança assustada. Quando falava, principalmente sobre sexualidade, empregava a linguagem de uma criança de oito ou nove anos de idade. Em matéria de aparência ou de comportamento, Linda parecia ter estacionado na idade de oito ou nove anos – na verdade, a época de sua vida em que se iniciou o abuso sexual mais severo. Nos meses que se seguiram, ela deixou os cabelos crescerem e passou a encrespá-los, dando-lhes um toque feminino. Começou também a usar saias e blusas de corte mais gracioso. Todo seu exterior mudou, passando daquele aspecto de garotão para o de uma jovem simpática. Também o seu linguajar se modificou; ela agora usa termos adultos quando fala de sexualidade. Busquei criar um ambiente amável no qual pudesse acontecer esse desenvolvimento, seja apoiando as escolhas de Linda quanto a penteados e vestuário, seja orientando-a no uso de vocabulário apropriado ao falar de sexualidade.
À medida que Linda ia viabilizando parte do desenvolvimento perdido na infância, outas área de desenvolvimento iam se apresentando. Por exemplo, ela tinha dificuldades de travar relacionamentos íntimos, uma das tarefas relacionadas à entrada na fase adulta. Nos cinco anos que com Linda ela foi gradualmente se abrindo a novos meios de se relacionar mais pessoalmente com Matt, com Dennis, comigo e com mais algumas outras pessoas. E, tendo preenchido uma parte da intimidade que perdera, Linda se encaminhou mais plenamente à tarefa adulta da reprodutividade (levar atenção aos outros), principalmente gerando vida em seus clientes.
Como pudemos o observar no caso de Linda, Deus colocou dentro de nós modelos de desenvolvimento emocional, estágios que devemos atravessar em nosso desenvolvimento como pessoas saudáveis e maduras. Mágoas podem interromper esse processo e fazer com que tenhamos esse desenvolvimento bloqueado. A graça da cura se apoia num processo natural de crescimento, e o resultado da oração consiste normalmente em dar andamento a esse processo e bloqueá-lo. A presença amorosa de Jesus, a minha e a de algumas outras pessoas possibilitaram a Linda recuperar em curto espaço de tempo os vários de desenvolvimento emocional perdido.
A cura ao longo dos oito estágios do desenvolvimento humano.
Acreditamos que os oito estágios de desenvolvimento humano descritos por Erik Erikson são um bom caminho para entendermos não só o nosso próprio processo natural de maturação, mas também o processo pelo qual Jesus passou enquanto “crescia em sabedoria, em estatura e em graça” (Lc 2,h). Escolhemos o trabalho de Erik Erikson por tê-lo julgado, de todos os esquemas psicológicos, o mais congruente com nossa fé cristã e com aquilo que aprendemos em nossas orações com Linda e com outros. Sentimo-nos muito especialmente ligados ao trabalho de Erikson em cinco aspectos.
O primeiro aspecto é a sua ênfase no que deve ser entendido por pessoa saudável. Muitos psicólogos realizaram estudos de patologia, e muito aprendemos com estes estudiosos. Mas Erikson acredita que não podemos realmente entender a natureza humana quando a vemos de maneira fragmentada; somente uma pessoa integrada e saudável e que pode nos delinear um quadro que significa ser humano. A ênfase de Erikson na pessoa saudável permite-lhe concentrar-se nas possibilidades humanas, inclusive no desenvolvimento das virtudes e suas implicações no desenvolvimento espiritual. Sobre as virtudes ele escreve: “os romanos diziam serem elas aquilo que faz o homem ser verdadeiramente homem; e o cristianismo acrescentou o espírito para o homem e o sentimento para a mulher”. Quando Erikson inicia sua abordagem pela saúde e não pela doença, faz eco à nossa crença cristã de que o bem se antepõe ao mal, de que os seres humanos foram criados bons e direcionados a um  desenvolvimento na plenitude de Cristo (Ef 3, 14-21; 4,13-16). Por ocasião da oração com Linda, quando me tornei sua amiga, aprendi que a única e a mais importante coisa que fiz por ela foi enxergar a bondade e o potencial de saúde que tinha dentro de si. Quando a vejo sob esse prisma – o que acredito só possa ser feito porque Jesus me ajuda a ver Linda como ele mesmo a vê -, ela se torna cada vez mais essa pessoa que vejo.
O segundo aspecto de acordo com o qual nos sentimos ligados ao trabalho de Erikson é sua crença de que o desenvolvimento anteriormente perdido pode vir a ser reconstruído depois e de que tudo pode ser curado: “São poucas as coisas que não podem ser remediadas mais tarde, mas muitas são as que se podem prevenir, impedindo que venham a acontecer”. Toda a nossa crença no poder da oração de cura repousa sobre a veracidade da afirmativa de Erikson, e nós repetidamente constatamos que não há nada que Jesus não possa curar. No caso de Linda fomos percebendo serem gradualmente curados os efeitos do abuso sexual violento e dos anos de desenvolvimento emocional perdido.
O terceiro aspecto é que Erikson enfatiza o desenvolvimento psicossocial (no qual o principal direcionamento diz respeito aos relacionamentos sociais maduros) antes que o desenvolvimento psicossexual (no qual o direcionamento principal se volta para o atendimento das necessidades sexuais). Por causa de sua perspectiva psicossexual, Erikson vê a comunidade inteira como parte do processo de cura. Quando Erikson começava a tratar de um paciente, era comum ir à sua casa para jantar com ele, de modo que pudesse observar a família e melhor entender o ambiente social do paciente. Erikson aprecia o valor daquilo que nós chamamos de comunidade cristã. Nesse tipo de comunidade, Deus encontra muitos canais, além de nossos próprios pais, para nos amar, tais como professores, amigos, etc. No caso de Linda, eu vim a ser a fonte de boa parte do amor materno que ela perdera na infância, e Matt e Dennis foram como irmãos para ela”.
Quarto aspecto, Erikson vê o crescimento como um processo ao longo de toda a vida, apresentando sempre novas oportunidades de se descobrirem dons para amar. Foi ele o descobridor daquilo que hoje é tido como a força impulsora do desenvolvimento, uma visão do desenvolvimento humano que não se detém na infância, mas vê a adolescência, a juventude, a idade madura e a velhice como outros tantos estágios do crescimento. Para nós, a visão eriksoniana de crescimento ao longo da vida se assemelha à visão cristã de como o Espírito Santo está nos renovando e conduzindo a uma vida plena.
O aspecto final que nos aproxima de Erikson é o seu sentido de como as forças e as fraquezas de cada estágio de desenvolvimento não são uma simples escolha, mas o encontro de um saudável equilíbrio entre o uso excessivo ou escasso de um dom. Por exemplo, no primeiro estágio do desenvolvimento, a criança deve estabelecer um sentido de confiança básica, apresentando-se como alternativa, a desconfiança. Mas a desconfiança não é de todo má, e criança que não tem desconfiança não demora para se queimar no primeiro fogão com que topar. Nosso modo pessoal de entendimento da fraqueza humana e do pecado é que o pecado é fundamentalmente o abuso ou a escassez do uso de um dom. os pecados sexuais, por exemplo, são o uso excessivo ou escasso do dom da intimidade. Embora possamos dizer que o abuso sexual contra Linda bem como o abuso sexual praticado por ela contra outros tenham sido pecaminosos, eles foram fundamentalmente o uso incorreto do dom da intimidade. Para se livrar do pecado, Linda não precisou livrar-se de sentimentos sexuais fortes, antes, precisava canalizá-los adequadamente para que pudesses ser um vigoroso dom em prol da intimidade.
Desenvolvimento humano: um mistério que vai além dos estágios psicológicos.
Por todas essas razões, decidimo-nos pelo embasamento deste livro no trabalho de Erik Ekikson e pela integração do trabalho dele ao que aprendemos sobre oração de cura. Como qualquer outro dom, o sistema dos oito estágios do desenvolvimento como Erikson o descreve tem suas limitações e corre o risco de ser mal usado. As limitações que encontramos no trabalho de Erikson são áreas em que outras linhas da psicologia e a espiritualidade nos forneceram visão mais ampla sobre mágoas e curas que ocorrem em cada um dos estágios. Por exemplo, a espiritualidade nos dá a compreensão das experiências de conversão, da oração pelos antepassados e da oração de libertação como elementos no processo de cura. no caso de Linda, a cura inclui a experiência de conversão na descoberta de que “Jesus quer partilhar tudo comigo”, bem como a oração pelos antepassados e a oração de libertação. Da psicologia aprendemos que pesquisas recentes vêm revelando causas genéticas e bioquímicas de determinados problemas emocionais e sociais, um dos quais o alcoolismo. Estudos de psicologia pré-natal indicam que o primeiro estágio de vida começa na concepção, enquanto para Erikson se inicia no nascimento. Alguns psicólogos, especialmente as mulheres, vêm sugerindo que os estágios de Erikson estão sujeitos a desvios em favor do desenvolvimento masculino e não refletem adequadamente o desenvolvimento feminino.
Tal viés machista é uma evidência em nossa cultura e se reflete na linguagem literária quando esta usa pronomes masculinos sempre que se refere a seres humanos ou a Deus. Esse sexismo estilístico reforça o sexismo da vida real, desenvolvendo em nós o hábito de ver os homens como paradigmas primários da natureza humana e da divina. Ficar a todo o momento dizendo “ele/ela”  e “o/a” é deselegante. Contudo, umas tantas vezes, ao longo deste livro, ao nos referirmos a seres humanos ou a Deus, iremos usar o gênero feminino, “ela”.
Além de procurarmos ser sensíveis ao sexismo e às limitações de Erikson, pretendemos evitar o mau uso do sistema que ele propôs. Um desses maus usos é ver os oito estágios como precisamente definidos, como se nos encontrássemos unicamente num estágio de cada vez, exatamente na ordem. O próprio entendimento de Erikson é de que nos encontramos em todos os estágios durante todo o tempo, de tal forma que, por exemplo, durante a vida inteira vamos aprofundando o primeiro estágio de confiança básica. A ideia de estágios de desenvolvimento durante determinadas idades específicas quer simplesmente dizer que há um período crítico para cada estágio. Ao mesmo tempo que Linda vinha completando o desenvolvimento perdido durante o estágio da idade escolar, no qual havia acontecido o abuso sexual com o consequente bloqueio de boa parte do seu desenvolvimento, ela estava também restabelecendo a confiança básica da infância e desenvolvendo a reprodutividade da idade adulta.
Pelo fato de estarmos em todos os estágios durante todo o tempo e visto que nossa personalidade e experiência de vida são tão únicas, cada um de nós percorre os estágios de forma única também. Podemos, por exemplo voltar atrás e curar os estágios fora de ordem. Linda não só começou a completar os estágios a partir da idade escolar em diante, como também voltou a estágios anteriores. A experiência de Linda – ter sido forçada a participar de um abuso sexual – prejudicou seu sentido de autonomia, tarefa de uma criança de dois a três anos de idade. No estágio de autonomia, a criança desenvolve sua vontade e aprende a dizer sim e não. O senso de autonomia de Linda não fora plenamente desenvolvido quando  ela tinha dois ou três anos, porque sua mãe, pessoa seriamente perturbada, foi incapaz de ensiná-la a responder adequadamente. O abuso sexual na idade escolar agravou os danos ao já vulnerável senso de autonomia de Linda. Assim, quando adulta, ela via-se paralisada em situações de sexualidade, incapaz de dizer não à sexualidade inadequada, ou dizer sim à sexualidade apropriada com seu marido. Um dos modos como trabalhei com Linda (a pedido dela mesma) foi dividir com ela a responsabilidade por suas respostas positivas e negativa em situações que envolviam sexualidade, de forma que pudesse vir a ajudá-la  a saber quando dizer sim e quando dizer não. Assim que me foi possível oferecer-lhe uma orientação amorosa, apropriada a uma criança de dois anos de idade, o senso de autonomia de Linda nessa área começou a emergir gradualmente.
Nossa caminhada pelos estágios é única, em parte porque os traumas e outros acontecimentos afetam diferentemente cada pessoa. Linda, por exemplo, bloqueou seu desenvolvimento em razão do abuso sexual. Por outro lado, Matt e Dennis falam de como tiveram seu desenvolvimento bloqueado por causa da morte do irmão, John. A morte de John quando Matt contava com sete anos e Dennis com cinco afetou cada um deles de modo diferente. Matt se encontrava em idade escolar, quando mais se evidencia o aspecto laborioso, ao passo que Dennis se encontrava ainda no estágio da iniciativa, quando a ênfase recai sobre a diversão. Embora nem Matt, nem Dennis tenham sido tão fundamentalmente feridos ou se deixado bloquear tanto quanto Linda, ambos deixam transparecer os efeitos da morte de John. Matt tem tendência a trabalhar além da conta Dennis, a brincar demais.
A unicidade do processo de desenvolvimento de cada pessoa implica dizer que não podemos usar os estágios como uma régua para medir a execução das tarefas da vida. Por exemplo, Erikson sugere que a adolescência é a ocasião ideal para se escolher uma ocupação, mas muita gente não chega a uma escolha definitiva da profissão antes dos trinta anos, e ainda alguns há que se entregam a uma profissão completamente nova após os quarenta ou cinquenta. Outro exemplo: o período mais usual para o casamento se situal na juventude, ente os 19 e os 35 anos. Mas um de nossos amigos que se casou aos 55 afirma: “ Não estava preparado para o casamento até aquela ocasião”.
O crescimento não se origina do fato de percorrer os estágios a tempo ou em ordem, mas de receber amor em qualquer estágio em que nos encontramos. Se nos deixarmos amar no ponto em que nos encontramos, como Linda se deixou amr em meio à sua mágoa e  raiva, automaticamente iremos crescer.
Vivenciando o processo da cura
Talvez a mais importante razão pela qual nos propusemos escrever este livro tenha sido a cura que vivenciamos ao fazer juntos um retiro de oito dias. Todas as manhãs, começávamos por ler a descrição de um dos estágios de Erikson. Em seguida, passávamos o dia em oração refletindo sobre nossas recordações positivas e negativas daquele estágio de vida. Finalmente à noite partilhávamos nossas lembranças e então orávamos um com o outro para que fosse curada toda e qualquer lembrança negativa e para que recebêssemos os dons e forças das lembranças positivas. No decorrer de cada um dos capítulos que se seguem, estaremos compartilhando as experiências vivenciadas nesse retiro e, o que é muito mais importante, vamos servir-nos dessa mesma estrutura (breve descrição do estágio de desenvolvimento, reflexão sobre lembranças positivas e negativas e oração pela cura) de modo que você possa vivenciar o mesmo processo que curou a nós e a muitos outros, como, por exemplo, Linda.
A cura acontece não só quando se curam lembranças negativas, mas também quando se recebe forças das lembranças positivas. Um casal, cujos problemas conjugais através dos anos o haviam levado à beira do divórcio, falou-nos a respeito do poder das lembranças positivas. O marido, que é psicoterapeuta, expôs todas as diferentes técnicas de aconselhamento que já haviam tentado um com o outro.
Nenhuma delas conseguiu ajudar-nos. O ponto decisivo de nosso casamento foi o dia em que minha esposa voltou do consultório médico. O médico lhe havia dito que provavelmente ela tinha câncer. Quando  me contou isso, a primeira coisa que fizemos foi chorar juntos. E então minha esposa disse: “Você tem sido um ótimo marido. Quando eu morrer, quero que você me prometa que vai se casar com outra pessoa e dar a ela todo o amor que você me dedicou”. Então começou a desfiar todas as suas recordações de quando eu lhe havia manifestado amor, como quando construí uma estufa para todas as suas plantas. Depois disso, voltamos a chorar juntos e eu lhe contei as lembranças que tinha de quanto ela me demostrara seu amor. Retomar essas lembranças foi o que curou nosso casamento. Elas nos deram o desejo e a esperança de amar-nos um ao outro das muitas maneiras que nosso coração andara esquecendo.
Sendo assim, lembranças positivas facilitam a cura, permitindo-nos focalizar menos o problema e mais o amor que temos recebido. O que nos dá ânimo para mudar não é a força de vontade, mas a do amor. Por anos a fio esse casal havia dispendido enorme soma de boa vontade e tomado centenas de resoluções na tentativa de resolver seus problemas conjugais. A cura acontece quando recebemos amor e então deixamos o amor alcançar nossas mágoas. É talvez por isso que  1 Jo 4, 10 diz: “Não fomos nós que amamos a Deus mas foi ele quem nos amor”. É o que nos diz Santo Inácio em suas normas para os discernimentos dos espíritos; quando nos sentimos deprimidos ou em estado de desolação, devemos voltar às lembranças positivas de consolação e absorver mais uma vez o amor contido nessas lembranças.
Grande parte dos textos bíblicos é um relato de como pessoas abatidas recebem força voltando-se para recordações positivas. Tomemos como exemplo o sexto século a.C., quando dêutero-Isaías e o povo judeu se encontravam cativos na Babilônia, segregados de seu templo e de sua pátria. Para manter viva a esperança dos judeus, Isaías comparava sua situação com a dos patriarcas hebreus no Egito, sete séculos antes. Os antigos judeus pela experiência do cativeiro no Egito como um tempo para entender a fidelidade de Javé e para formar os laços da grande nação judaica. Dessa mesma forma o dêutero-Isaías desafia os judeus cativos da Babilônia a olhar para diante, com vistas à vivência de um relacionamento mais profundo com Javé e de um com o outro (cf Is 41, 15; Ex 14, 21), da mesma forma como ocorre aos judeus cativos no Egito. Muito mais tarde, os judeus dos tempos de Jesus (sob a dominação romana) iriam celebrar a ceia da Páscoa, que durante séculos havia sido o caminho para retornar as lembranças positivas da fidelidade de Javé para com seus patriarcas quando sujeitos à dominação egípcia. Exxa ceia pascal com seu cálice de bênçãos, essa celebração de lembranças positivas, foi o que Jesus escolheu como cenário quando quis instituir a eucaristia. Por isso, não há surpresa nenhuma no fato de eucaristia, em grego, querer dizer “ação de graças” e ser um convite para diariamente celebrarmos e deixarmos que o amor de Jesus nos renove, especialmente por meio de nossas recordações positivas.
Quando nos enraizamos no amor de Jesus, enchemo-nos de forças para transformar nossas lembranças negativas de tempos de dor em tempos de dom, precisamente como ele fez em sua própria vida. Foi assim que Jesus transformou a mágoa de sua infância, como refugiado e estrangeiro no Egito, no dom de amar os excluídos e os estrangeiros samaritanos; sua mágoa de adolescência por causa da morte de seu par adotivo, José no dom de desejar ardentemente seu Abba, o Pai; sua mágoa adulta, de ver frustrados seus esforços, no dom de compaixão por aqueles que, como o bom ladrão (cf Lc 23, 39), se consideravam inferiores. Jesus nos promete que as maiores dores, em cada um dos estágios de vida, serão nos maiores dons.
O lema de Dag Hammarskjold será nossa prece por este livro: “Por tudo o que já ocorreu, obrigado! Por tudo o que ainda virá, sim!”
Os oito estágios da vida,
Erik Erikson

Estágios
Crise Psicossocial
Virtude
Área de reconhecimentos significativos
1. Primeira infância
Idade: até 2 anos
Confiança básica x
Desconfiança básica
EsperançaFigura materna
2. Infância
Idade: 2 a 3 anos
Autonomia x
Vergonha e Dúvida
VontadeFigura paterna
3. Idade Lúdica
Idade: 3 a 5 anos
Iniciativa x
Culpa
PropósitoFamília básica
4. Idade Escolar
Idade: 6 a 12 anos
Atividade x
Interioridade
CompetênciaVizinhança, escola
5. Adolescência
Idade: 12 a 18 anos
Identidade x
Confusão de Identidade
FidelidadeGrupos parceiros ou grupos externos
Modelos de liderança
6. Juventude
Idade: 19 a 35 anos
Intimidade x
Isolamento
AmorParceria na amizade, sexo, competição, cooperação
7. Idade Adulta
Idade: 35 a 65 anos
Reprodutividade x
Estagnação
DedicaçãoDivisão de trabalho e partilha da moradia
8. Velhice
Idade: após 65 anos
Integridade x
Desespero
Sabedoria“O Gênero humano”
“O meu tipo”
Texto tirado do livro A cura dos oito estágios da vida. Matthew Linn/Sheila Fabricant Linn/Dennis Linn.

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