Em síntese: O Código de Direito Canônico promulgado em 1917 era muito severo em relação aos fiéis católicos divorciados e recasados, por viverem em situação religiosamente irregular. A partir do Concilio do Vaticano II, a Igreja, sem retocar a lei divina que proclama a indissolubilidade de um matrimônio validamente contraído e consumado, procura estimular tais fiéis a não se afastarem do convívio da comunidade católica; procurem, antes, tomar parte em atividades da paróquia compatíveis com o seu estado; rezem e tudo façam para educar os filhos na fé católica. É claro, porém, que não podem ter acesso à Comunhão Eucarística, pois esta supõe o estado de graça, que a situação conjugal desses fiéis exclui.
O artigo abaixo enuncia minuciosamente os itens que definem a posição dos divorciados recasados frente à Igreja e examina as objeções levantadas contra a praxe da Igreja.
A situação dos fiéis católicos divorciados e recasados constitui um dos mais graves problemas da Igreja em nossos dias. Sempre houve dificuldade de desarmonia conjugal. Eis, porém, que atualmente se tornam mais prementes, pois se têm multiplicado os casos. A Igreja está atenta a tais situações e vem acompanhando os cônjuges infelizes com especial zelo pastoral.
A seguir, serão propostas
1) as principais intervenções do Magistério neste particular;
2) os elementos essenciais da doutrina católica;
3) as críticas levantadas contra essa doutrina e as respostas a lhes ser dadas.
Os recentes Pronunciamentos do Magistério
Nas décadas de 1960 e 1970 o divórcio foi legalizado em vários países de população católica em sua maioria – o que tornou candente o problema dos fiéis divorciados e recasados. O Direito Canônico promulgado em 1917 e ainda vigente na época considerava tais cristãos como pecadores públicos (cânon 2356, § 1º), privados dos sacramentos da Penitência e da Eucaristia, enquanto vivessem conjugalmente. Verdade é que já então se faziam ouvir vozes de clérigos, principalmente nos Estados Unidos, que julgavam demasiado severa tal legislação: lembravam a diversidade das situações e, principalmente, o caso daqueles cônjuges divorciados recasados que tinham dúvidas fundadas a respeito da validade de sua primeira união, mas não podiam apresentar provas suficientes para iniciar um processo de declaração de nulidade. Havia também quem adotasse uma solução de foro meramente interno, afirmando que, em certos casos e sob certas condições, o confessor poderia autorizar os divorciados a receber os sacramentos da Penitência e da Eucaristia.
Diante destes fatos, a Congregação para a Doutrina da Fé enviou, aos 11/4/1973, uma Carta a cada Bispo, reafirmando a indissolubilidade do matrimônio sacramental. Quanto ao problema dos que vivessem em situação irregular, pedia que se observasse a doutrina vigente e lembrava “o possível recurso à praxe da Igreja no foro interno”.
Tal Carta tinha por objetivo defender a indissolubilidade do matrimônio, ameaçada por vários lados. Mas a expressão “recurso à praxe da Igreja no foro interno” se prestava a interpretações diversas. A Congregação para a Doutrina da Fé entendia-se no sentido de que os divorciados recasados se poderiam aproximar dos sacramentos desde que passassem a viver como irmão e irmão e evitassem qualquer escândalo. Todavia não foi assim que muitos interpretaram os dizeres da Igreja: julgavam que os fiéis recasados poderiam receber os sacramentos mesmo mantendo sua união conjugal ilegítima; colocavam também o problema daqueles que estavam subjetivamente convictos da nulidade da sua união precedente.
Esses questionamentos vieram à tona no Sínodo Mundial dos Bispos realizado em 1980. Como fruto das reflexões ocorrentes nessa assembleia, o Santo Padre João Paulo II, aos 22 de novembro de 1981, assinou a Exortação Apostólica Familiaris Consortio, que traçava diretrizes a ser observadas no tocante ao sacramento do matrimônio, inclusive com referência aos divorciados recasados.
Em 1983 foi promulgado o novo Código de Direito Canônico, que confirmou a praxe vigente: não se admitam à Comunhão Eucarística os fiéis divorciados recasados (cânon 915; o mesmo vale para os católicos de rito oriental, conforme o Direito respectivo, cânon 712). O Código de 1983 atribui exclusivamente aos tribunais eclesiásticos a competência para examinar a validade do matrimônio dos católicos como também estipula novos impedimentos que tornam nulo o casamento sacramental. Tais impedimentos levam em conta a incapacidade psicológica, que afeta não poucos indivíduos, de assumir uma vida a dois em caráter vitalício; são aí considerados os diversos casos que ajudam a compreender a crise e a angústia de muitos casais.
Apesar das explícitas declarações de Familiaris Consortio, do Catecismo da Igreja Católica (nº 1650s) e documentos congêneres, havia na Igreja quem estimulasse os divorciados recasados a receber a Comunhão Eucarística, principalmente quando levassem vida fiel à sua nova união. Em 1993, os Bispos da Província Eclesiástica do Alto Reno (Alemanha) publicaram uma Carta Pastoral a respeito do acompanhamento pastoral de pessoas infelizes em seu casamento, divorciadas e divorciadas recasadas. Essa Carta reafirmava a indissolubilidade do matrimônio frente a certa insegurança e hesitação existente em algumas paróquias, mas admitia que em certos casos se poderia dar a Comunhão Eucarística a divorciados recasados que em sua consciência se julgassem aptos e para tanto obtivessem o parecer favorável de um sacerdote prudente e experimentado.
Tal atitude dos três Bispos mencionados encontrou cá e lá ecos positivos, mas suscitou outrossim a réplica de muitos prelados e organismos da Cúria Romana que pediram à Congregação para a Doutrina da Fé uma tomada de posição. Outras vozes, porém, pediam a abolição das normas vigentes, em favor de maior liberalização; assim, por exemplo, alguns propunham que dos fiéis divorciados e recasados se exigisse um período de reflexão e penitência, após o qual seriam readmitidos aos sacramentos em geral. Outros ainda proclamavam que se deixasse a decisão à consciência dos interessados ou dos sacerdotes.
Diante deste cruzamento de sentenças, a Congregação para a Doutrina da Fé houve por bem publicar uma Carta aos Bispos sobre a recepção da Comunhão Eucarística por parte dos fiéis divorciados e recasados, com a data de 14/9/94. Tal documento reafirmava as normas clássicas da Igreja para o caso.
Vejamos agora
Os Pontos Essenciais da Doutrina Católica
Pode-se compendiar em sete pontos a doutrina católica concernente ao assunto.
Os fiéis divorciados recasados estão em situação que contrasta com o Evangelho.
Basta lembrar a palavra de Jesus em Mc 10,11s:
Basta lembrar a palavra de Jesus em Mc 10,11s:
“Quem repudia a sua mulher e desposa outra, comete adultério contra ela; se a mulher repudia o marido e desposa outro homem, comete adultério”.
Em consequência, a Igreja afirma que ninguém, nem mesmo o Papa, tem o poder de declarar nulo um matrimônio validamente contraído e consumado. Aliás, a própria lei natural, impregnada no íntimo de cada ser humano, rejeita o divórcio, isto é, a dissolução do casamento com direito a novas núpcias. Do divórcio se distingue a separação conjugal, que pode ser legítima, quando a vida matrimonial se torna muito difícil ou insustentável.
Os fiéis divorciados e recasados continuam sendo membros da Igreja dentro da comunidade eclesial e devem experimental o amor de Cristo e o acompanhamento materno da Igreja.
As segundas núpcias de pessoas divorciadas privam da Comunhão Eucarística, mas não acarretam a excomunhão. Esta é uma pena jurídica, de foro externo, e prova, de modo geral, da comunhão com a Igreja e não apenas priva da Eucaristia.
A solicitude materna da Igreja deve estender-se a todos os filhos, inclusive aos que vivem em situação irregular. A Igreja é chamada a procurar promover a salvação de todos. Daí as palavras de João Paulo II:
“A Igreja não pode abandonar aqueles que, ligados pelo vínculo matrimonial sacramental, passam a novas núpcias. Por isto Ela se esforçará incansavelmente por colocar à sua disposição os meios de salvação” (Familiaris Consortio, nº 84).
Não somente os sacerdotes, mas também os fiéis leigos ou toda a Igreja têm a obrigação de procurar fazer que os irmãos de vida irregular não se considerem separados da Igreja:
“A Igreja reze por eles, estimule-os, mostre-se Mãe misericordiosa e assim os sustente na fé e na esperança” (ibid. nº 84).
Leve-se em conta que há diversas situações de cristãos divorciados recasados: existem aqueles que passaram a novas núpcias depois de haver tentado todos os meios possível para salvar seu casamento, e existem aqueles que culpadamente destruíram seu matrimônio. Existem aqueles que contraíram novas núpcias em vista da educação dos filhos e, no momento, não se podem separar. Existem também os que se recasaram porque, em consciência, julgavam ter sido nulo o primeiro casamento (embora não pudessem provar a nulidade). Por fim, há também aqueles que em sua nova união descobriram os valores da fé e perfazem uma caminhada religiosa de grande significado; cf. Familiaris Consortio nº 84.
3) Na qualidade de cristãos batizados, os fiéis divorciados recasados são chamados a tomar parte ativa na vida da Igreja na medida em que isto seja compatível com a sua situação dentro da Igreja.
“Juntamente com o Sínodo, exorto vivamente os pastores e a inteira comunidade dos fiéis a ajudar os divorciados, promovendo com caridade solícita que eles não se considerem separados da Igreja, podendo e, melhor, devendo, enquanto batizados, participar na sua vida. Sejam exortados a ouvir a Palavra de Deus a frequentar o Sacrifício da Missa, a perseverar na oração, a incrementar as obras de caridade e as iniciativas da comunidade em favor da justiça, a educar os filhos na fé cristã, a cultivar o espírito e as obras de penitência para assim implorarem, dia a dia, a graça de Deus. Reze por eles a igreja, encoraje-os, mostre-se mão misericordiosa e sustente-os na fé e na esperança” (Familiaris Consortio nº 84).
A pertença à Igreja não se manifesta apenas na frequentação da Comunhão Eucarística. Existem várias possibilidades de participar da vida da Igreja no campo extra-sacramental.
4) Em virtude da sua situação irregular, os fiéis divorciados recasados não podem exercer certas funções na comunidade católica.
Tais funções seriam, entre outras, a de padrinho ou madrinha do Batismo e da Crisma, pois tal tarefa implica dar testemunho e vivência católica aos afilhados, que necessitam de ver concretamente a fidelidade dos mais velhos.
Eis outras funções excluídas: a de ministros extraordinários na Liturgia, a de catequista, a de membro do Conselho Pastoral, pois tais encargos exigem lúcido testemunho de vida católica; são funções de certo relevo, que não podem ser entregues aos que não vivem integralmente segundo o Evangelho, pois isto poderia suscitar confusão no povo de Deus.
Estas restrições não implicam injusta discriminação, mas são consequências naturais da situação em que se acham os fiéis divorciados recasados.
5) Desde que os divorciados recasados deixem seu estado irregular, separando-se ou vivendo em plena continência, podem ser readmitidos aos sacramentos.
Para receber o sacramento da Reconciliação, que no caso é a única via para a Comunhão Eucarística, requer-se que o fiel faça o propósito de não tornar à vida irregular. Isto implica que o(a) penitente se separe do(a) ilegítimo(a) consorte ou, caso não seja possível (por causa dos filhos ou por outras razões), deixe de ter relações sexuais; cf. Familiaris Consortio nº 84.
No caso de voltarem aos sacramentos, os dois interessados deverão procurar evitar mal-entendidos ou escândalos por parte do povo de Deus.
6) Os divorciados recasados que estão convictos da nulidade de seu precedente casamento, devem regularizar sua situação por vias de foro externo, ou seja, por vias jurídicas.
O casamento é uma realidade pública que afeta tanto a Igreja quanto a sociedade civil. Por
isto o consentimento matrimonial não é um ato meramente privado, mas cria uma situação de caráter social. Por isto não compete à consciência de cada um julgar, na base de suas convicções, se o respectivo casamento foi válido ou não e daí tirar conclusões de ordem pública e prática, contraindo novas núpcias.
isto o consentimento matrimonial não é um ato meramente privado, mas cria uma situação de caráter social. Por isto não compete à consciência de cada um julgar, na base de suas convicções, se o respectivo casamento foi válido ou não e daí tirar conclusões de ordem pública e prática, contraindo novas núpcias.
Por isto a experiência da Igreja atribui aos tribunais eclesiásticos o exame da validade dos casamentos dos fiéis católicos.
7) Os divorciados recasados nunca perdem a esperança de obter a salvação eterna.
Diz Papa João Paulo II em Familiaris Consortio nº 84
“Com firme confiança a Igreja crê que mesmo aqueles que se afastaram dos mandamentos do Senhor e vivem atualmente nesse estado, poderão obter de Deus a graça da conversão e da salvação, se perseverarem na oração, na penitência e na caridade”.
Embora não possa aprovar formas de vida contrastantes com a Palavra do Evangelho, a Igreja não deixa de amar seus filhos em situação matrimonial irregular. Ela compreende seus sofrimentos e dificuldades e acompanha-os com ânimo materno, procurando fortalecê-los na fé e incutir-lhes a confiança na misericórdia de Deus, que tem amplos recursos para levar os homens à salvação eterna.
Faz-se oportuno agora examinar as principais críticas levantadas contra a doutrina da Igreja.
Revista “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 431 – 1998 – p. 162
D. Estevão Bettencourt, osb
Nº 431 – 1998 – p. 162
Prof. Felipe Aquino
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