quinta-feira, 12 de maio de 2011

Um caso entre tantos outros

“Queridos pais,

Imagino a raiva que têm de mim. Sim, fui muito ingrata com vocês. Larguei os estudos, tornei-me viciada, desapareci. Vim para São Paulo com um amigo e, aqui, passei a viver de pequenos expedientes. Na verdade, afundei-me na lama.
O fato é que, agora, estou na pior. Peguei Aids. O que temo não é a morte. Ela é inevitável para todos nós. Tenho medo é de ficar sozinha. Preciso de vocês. Mas também sei que os maltratei muito e posso entender que queiram manter distancia de mim. Cada um na sua.
É muito cinismo da minha parte vir, agora, pedir socorro. Mas, sei lá, alguma coisa dentro de mim dá forças para que eu escreva esta carta. Nem que seja para saberem que estou no início do fim.
Um dia qualquer, passarei aí em frente de casa, só para dar um último adeus com o olhar. Se por acaso tiverem interesse que eu entre, numa boa, prendam, à goiabeira do jardim, um pano de prato branco ou uma toalha de rosto. Então pode ser que eu crie coragem e dê um alô. Caso contrário, entendo que vocês têm o direito de não querer carregar essa mala pesada e sem alça na qual me transformei. Irei em frente, sem bater à porta, esperando em Deus, que, um dia, a gente se reencontre no outro lado da vida.
Beijos da filha ingrata, mas que ainda os guarda, no fundo do coração, com muito amor."                                                     
Clara


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Três semanas depois, antes da cinco horas da manhã, Clara desembarca na rodoviária e toma um ônibus para a Praia do Canto. É quinta-feira, e o vento sul começa a aplacar o calor, encapelando o mar e silvando entre prédios e janelas. Clara desce na esquina e caminha, temerosa pelo outro lado da rua. Sabe que, a essa hora, seus pais e as duas irmãs costumam estar dormindo.
Ao decifrar a ponta do telhado, seu coração acelera. Olha o portão de ferro, esmaltado de preto, as grades em lança que marcam o limite entre a casa e a calçada. Vislumbra o cume da goiabeira. Seus olhos ficam marejados. De repente, uma coisa branca quebra o antigo cenário. Não é uma toalha nem um pano de prato. É um lençol, com pequenos furos no meio, tremulando entre a árvore e o muro da garagem.
Em prantos, Clara atravessa a rua e corre para casa.

Extraído do romance de Fr. Betto: O vencedor; Ed. Ática, 1995

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